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“É só uma gripezinha”? Produzindo um contra-relato midiático das Crises Discursivas sobre a COVID-19 no Brasil

, , ORCID Icon &

RESUMO

Nosso objetivo é produzir um contra-relato acerca da crise discursiva nos meios de comunicação que, desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, já apontava um profundo impacto sobre os grupos vulneráveis e marginalizados desvelando a interseção entre das múltiplas desigualdades. Recorremos à combinação das Sociologias das Ausências e Emergências e à interseccionalidade para desafiar o regime de verdade associado aos relatos hegemônicos ao “contar” com notícias como meio de contrastar o discurso hegemônico com um lado oculto da realidade sócio-política. Metodologicamente, coletamos 235 notícias – de 11 de março a 16 de abril de 2020 – de sete veículos de mídia brasileiros para revelar, através de análises temáticas, uma crise discursiva com quatro quadrantes opostos. Argumentamos que a mídia alternativa teve um papel crítico ao destacar os impactos do que entendemos como necropolíticas ao (i) expor o sofrimento daquelas pessoas e grupos condenados à não existência no discurso hegemônico; (ii) amplificar as vozes levantadas por grupos vulneráveis e marginalizados e as atividades de grupos sociais com o objetivo de resistir. A exploração da crise discursiva nos permitiu amplificar as tentativas de (re)emergência que combateram a necropolítica com implicações para (re)pensar o papel da contabilidade em contextos desiguais. Em conclusão, nosso contra-relato revela como as desigualdades históricas e o crescimento do conservadorismo neoliberal sustentaram uma perda flagrante de direitos durante a pandemia como uma crise de generificada e racializada no Brasil. Contribuímos para a literatura existente conectando o potencial da contabilidade de comunicar/construir realidades e a necessidade de relatos alternativos baseados nas Sociologias das Ausências e Emergências.

This article is a translation of:
“Is it just a little flu”? Producing a news-based counter account on Covid-19 discursive crises in Brazil

1. Introdução

As epidemias e pandemias desempenham um papel central para trazer à tona as desigualdades, notadamente quando são necessárias medidas de isolamento social, quarentena e confinamento (Santos et al., Citation2020; Shantz, Citation2010) e especialmente em contextos de desigualdades e disparidades sociais significativas (Shantz, Citation2010).Footnote1 A esse respeito, “ainda há muito a aprender sobre o papel da contabilidade na formação da crescente desigualdade econômica” (Andrew et al., Citation2021, p. 1471).

De acordo com estudiosos e estudiosas críticos, a contabilidade opera como um “poder social” que permite a criação de um “regime da verdade”, que influencia os discursos aceitos como absolutos e lhes atribui o valor e o status de “falar” a verdade (Boyce, Citation2000, p. 67; Hines, Citation1988). Da mesma forma, a contabilidade pode legitimar “quem” pode falar e quais discursos podem ser válidos/verdadeiros, permitindo que grupos sociais sejam ouvidos/vistos ou silenciados/apagados (Lehman, Citation2019a). Alinhados com a abordagem crítica da pesquisa contábil, questionamos o potencial das práticas tradicionais de contabilidade e de prestação de contas para informar sobre as condições humanas durante a pandemia de Covid-19. Dentro deste contexto, estudos anteriores indicam a contra-contabilidade como uma forma de desafiar relatórios e discursos oficiais que refletem a lógica neoliberal e hegemônica que permite múltiplas formas de opressão (Denedo et al., Citation2017; Islam et al., Citation2021), revelando, portanto, estruturas de poder ocultas.

Os contra-relatos operam como uma “perspectiva de oposição explícita para desafiar e enfrentar relações de poder dominante e desigual, ideologias políticas inaceitáveis e para deslegitimar práticas corporativas insustentáveis, dando voz a grupos oprimidos” (Denedo et al., Citation2017, p. 1310). Em vista disto, a Internet “tem o potencial de facilitar mudanças […] com um potencial emancipatório” (Sikka, Citation2006, p. 759), pois permite que uma multiplicidade de vozes surja deste cenário, disponibilizando informações centrais para a produção de contra-relatos. Neste artigo, consideramos que os meios de comunicação online representam diferentes “relatos” e discursos (ver Ahrens & Ferry, Citation2021; Hatcher, Citation2020; Morales et al., Citation2014), permitindo o surgimento de uma multiplicidade de vozes.

Argumentamos que durante a pandemia de Covid-19, surgiram perspectivas opostas devido ao “desencadeamento em efeito dominó na reputação de especialistas, autoridades e políticos fugindo de suas responsabilidades” (Hurley Citation2020, p. 1017)Footnote2. Nesse sentido, concordamos com Hier e Greenberg (Citation2002, p. 491) que “os discursos da mídia funcionam em termos de capacidade de recrutar e mobilizar leitores de notícias como participantes ativos na construção de crises discursivas”. Consequentemente, o posicionamento/discursos da mídia são essenciais para influenciar as decisões governamentais e estabelecer uma agenda e projeto de políticas públicas visando soluções em larga escala (Dunlop et al., Citation2020), indo além dos tradicionais relatórios e tecnologias contábeis.

No caso brasileiro, um país marcado pelas heranças coloniaisFootnote3, a pandemia mostra desigualdades crescentes de gênero, raça e classe social. Dados das Nações Unidas mostram uma crise generificada e racializada que encontra alicerces perniciosos em um contexto pós-colonial latino-americano (Lotta et al., Citation2021). Isso implica o reconhecimento dos legados da escravidão brasileira e da governabilidade do estado colonial (Silva et al., Citation2019) que se traduz em diferentes experiências baseadas na interseccionalidade, ou seja, as diferenças que se acumulam com base no entrelaçamento de marcadores sociais (Akotirene, Citation2019; Crenshaw, Citation2002; Ribeiro, Citation2019).

Argumentamos que as desigualdades interseccionais no Brasil podem estar relacionadas ao discurso hegemônico e às medidas governamentais para combater a pandemia de COVID-19. Neste artigo, o discurso hegemônico é conceituado como uma forma sócio-econômico-política que se põe como superior e linear, atrelada ao desenvolvimento capitalista. Baseado na razão metonímica, o discurso hegemônico afirma ser a única racionalidade que sustenta decisões e ações, constituindo-se como “verdade” e subalternizando outras vozes enquanto se recusa a permitir outras (re)existências (Santos, Citation2002).

A partir deste contexto, pretendemos produzir um contra-relato que desafie o discurso hegemônico a respeito da pandemia de Covid-19 no Brasil. Nosso principal argumento é que, durante a crise, o discurso hegemônico do governo brasileiro ignorou o aprofundamento das desigualdades e os impactos sobre a população socialmente vulnerável. Por outro lado, a mídia alternativa apresentou diferentes pontos de vista, disputando espaço com o discurso hegemônico. Portanto, exploramos como as desigualdades no cenário pandêmico emergem da cobertura midiática no Brasil durante uma crise discursiva, oferecendo elementos para desafiar os discursos hegemônicos por meio de um contra-relato.

Consideramos as crises discursivas “narrativas centradas em assuntos particulares que são entendidas coletivamente como sintomáticas de um objeto mais geral que se acredita existir em um período de crise” (Hier & Greenberg, Citation2002, p. 491). Considerando que comunicar e narrar a crise pode construir a realidade (Hines, Citation1988), “atores utilizam essas crises para expressar (na/através da mídia) sua defesa de diferentes valores […] para legitimar assim seus pontos de vista/idéias a ordem social, política e econômica em mutação” (Krzyżanowski, Citation2009, p. 20). Diante de tal contexto, os veículos de mídia podem desafiar ou manter a ordem social, política e econômica durante a pandemia, proporcionando uma compreensão mais profunda da dinâmica da crise que se desenrola. Partindo desse entendimento, nos concentramos em explorar os padrões temáticos das desigualdades durante a crise discursiva brasileira.

Como Islam et al. (Citation2021), não documentamos um “contra-relato” produzido por outros, mas exploramos contra-narrativas nas notícias da mídia para produzir uma alternativa para desafiar o discurso hegemônico. Para produzir nosso contra-relato, analisamos diferentes posicionamentos da mídia por meio do arcabouço teórico das Sociologias das Ausências e Emergências (SAE), propostas por Santos (Citation2002) como parte das epistemologias descoloniais do Sul (Sauerbronn et al., Citationno prelo). A proposta de Boaventura de Sousa Santos (Citation2002) das SAE objetiva a emancipação do Sul, que pode ocorrer pela identificação do potencial de produção de uma globalização alternativa (por movimentos sociais e ONGs) contra a exclusão e a discriminação em diferentes contextos, especialmente nos países semiperiféricos.

Combinamos as SAE e literatura da contra-contabilidade para explorar o potencial emancipatório e transformador da contabilidade (Gallhofer et al., Citation2006). Neste contexto, argumentamos que as SAE ajudam a expandir a compreensão de realidades alternativas ao discurso hegemônico que impede uma compreensão aprofundada de um cenário subalternizante. Adicionalmente, combinamos as SAE com a teoria interseccional advinda do feminismo negro (Akotirene, Citation2019; Crenshaw, Citation2002; Ribeiro, Citation2019). A pesquisa interseccional na contabilidade (Lehman, Citation2019a) permite uma melhor compreensão do desdobramento da crise da Covid-19 e do entrelaçamento das desigualdades, ao mesmo tempo em que nos ajuda a evitar o silenciamento de vozes dos corpos estigmatizados.

Empiricamente, nosso corpus de pesquisa compreende notícias e reportagens veiculadas na mídia digital brasileira no primeiro mês da pandemia. No total, analisamos 235 notícias publicadas em sete veículos de mídia e as submetemos à análise temática (Saldaña, Citation2009), orientada pelas SAE (Santos, Citation2002) e pela teoria interseccional. A partir das notícias contrastamos discursos opostos que apontam para o uso divergente detecnologias contábeis. Tal resultado permite aprimorar a compreensão sobre o discurso hegemônico no Brasil, desde o início da pandemia, para manter e defender uma lógica neoliberal, mesmo diante de situações extremas. Por outro lado, nosso contra-relato abre espaço para amplificar as vozes que expressam desigualdades e destacam atos de resistência nas comunidades historicamente marginalizadas e oprimidas do Brasil.

Contribuímos para a literatura de duas maneiras. Primeiramente, ilustramos a discussão de Sikka (Citation2006) a respeito do potencial emancipatório da Internet e da contra-relatos. Nossos resultados mostram como grupos não hegemônicos utilizaram/criaram os espaços oferecidos – principalmente pela mídia online alternativa – para se fazerem ouvidos, desafiando o discurso neoliberal durante a pandemia de Covid-19. Em segundo lugar, apresentamos as SAE (Santos, Citation2002) como uma possibilidade teórica-metodológica para identificar as ausências em um país marcado pelo legado colonial. As lentes das SAE nos permitiram identificar as vozes e experiências ausentes no discurso hegemônico durante a pandemia de Covid-19, abrindo assim o caminho para produzir nosso contra-relato, amplificando as vozes oprimidas.

2. Arcabouço teórico

Nosso arcabouço teórico se baseia na literatura acerca de contra-contabilidade, associando-a às Sociologias de Ausências e Emergências (SAE) para desafiar as práticas discursivas hegemônicas e reconhecer as desigualdades interseccionais. Para compreender as profundas fontes de disparidade que os relatórios e números oficiais escondem, acrescentamos a lente da interseccionalidade para revelar o efeito de embricamento entre gênero, classe e raça (no entrecruzamento com a pandemia de Covid-19) em um contexto pós-colonial particular. Argumentamos que o caso brasileiro é (infelizmente) um locus privilegiado de entendimento devido a uma pandemia mal-gerenciada que causou mais de 688.000 mortes até outubro de 2022. De maneira geral, nosso arcabouço teórico propõe uma melhor compreensão de como o impacto da construção e descontrução das desigualdades se relaciona a um processo que, desde seu início, já era produzido/esperado.

2.1. Desafiando a contabilidade e os discursos hegemônicos com contas relatos

Os números representam uma realidade escolhida, produzindo a (in)existência de algo. É um pilar fundamental das ciências contábeis devido a suas premissas de medir e registrar fenômenos (Lehman, Citation2019b). Além disso, a contabilidade e a prestação de contas [accountability] são tecnologias de poder social, que desempenham simultaneamente um papel persuasivo ou restritivo (Galhoffer & Haslam, Citation2019). Há evidências contrárias à neutralidade nos instrumentos oficiais de prestação de contas (ver McGee & Gaventa, Citation2010), confrontando a crença generalizada de que as iniciativas de transparência têm o poder transformador de substituir práticas que retêm privilégios, ocultação e distorção (Welker et al., Citation2011). A literatura em contabilidade crítica tem discutido o viés do Estado em direção a uma visão específica do mundo econômico que favorece o capitalismo financeiro em vez de representar interesses sociais pluralistas (Archel et al., Citation2009). No contexto da pandemia, os relatórios de prestação de contas e os números – contábeis ou não – ganham ainda mais destaque devido à necessidade de tomada de decisões oportunas baseadas na ideia de neutralidade e em evidências (Larrinaga & Garcia-Torea, Citation2022).

Para confrontar o status quo, encontramos na literatura contábil a possibilidade de resistir aos discursos hegemônicos e às ideias de neutralidade no cenário pandêmico por meio da contra-contabilidade. A contra-contabilidade surgiu no campo contábil no início dos anos 2000 como um mecanismo para (i) revelar redes alternativas de responsabilização e governança; (ii) problematizar e resolver disfunções; e (iii) preencher lacunas na divulgação ou conhecimento necessário para governar de forma inclusiva e eficaz (Brown & Dillard, Citation2015; Thomson & Bebbington, Citation2005).

Originalmente, a contra-contabilidade está relacionada às organizações da sociedade civil que representam visões alternativas sobre questões sociais e reivindicações de minorias sobre impactos organizacionais. A contra-contabilidade opera ainda como uma política simbólica para produzir representações alternativas visando mudanças nas práticas dentro do sistema governamental (Apostol, Citation2015; Denedo et al., Citation2017; Gallhofer et al., Citation2006). Por fim, a contra-contabilidade pode expor grupos sociais hegemônicos e o Estado.

Seguimos o argumento de Himick e Ruff (Citation2020) de que os contra-relatos são estratégias de resistência, nas quais “ativistas reestruturam o cálculo e os limites do lucro de formas específicas para resistir a práticas consideradas imorais” (p. 2). Além disso, concordamos com Sikka (Citation2006) ao reconhecer que organizações que frequentemente operam fora da máquina estatal, da lei e dos centros tradicionais – incluindo veículos de mídia alternativa – fazem críticas e políticas visíveis que são alternativas à rede de relações sociais que sustentam a contemporaneidade e a desigualdade usando a internet.

Assim, ao focar nas crises discursivas da mídia, nosso arcabouço teórico visa romper com a lógica econômica frequentemente atribuída à contabilidade, centralizando-se nas questões sociais [desigualdades, neste artigo] (Apostol, Citation2015). Defendemos a necessidade de novos relatos no cenário pandêmico do Brasil, equilibrando a pluralidade de vozes e a ação coletiva na mídia que desafia os números/resultados das políticas públicas e organizacionais em contextos democráticos, como sugere Lehman (Citation2019b). Seguindo uma tradição estabelecida de amplificar vozes marginalizadas, nosso objetivo é aproveitar o potencial emancipatório dos contra relatos como ferramenta de resistência e de mudança social. Nos contrapomos às estatísticas e aos relatórios oficiais, fornecendo interpretações alternativas emergentes a partir de diferentes veículos de mídia acerca das desigualdades pandêmicas. As SAE permitiram a construção de um contra-relato que ressoa as vozes de grupos não hegemônicos.

2.2. Contribuições das sociologias das ausências e emergências

As Sociologias das Ausências e Emergências (Santos, Citation2002) reconhecem uma razão metonímica e uma razão proléptica para entender o que existe oficialmente nos discursos hegemônicos. A razão metonímica afirma ser uma racionalidade superior que se recusa a descobrir outras formas de conhecimento; qualquer reconhecimento é subalternizador, pois a razão metonímica o considera como um simples input. Além disso, a razão proléptica concebe o futuro como linear, automático e inescapável, dispensando a reflexividade temporal. Para Santos (Citation2002), a perspectiva hegemônica, baseada nestas duas formas de raciocínio, é arrogante ao clamar a si mesma (e impor aos outros) “saber tudo sobre o futuro de todos” (p. 240).

Diante do domínio da razão metonímica, Santos (Citation2002) entende que a expansão do mundo e a dilatação do presente começam com a sociologia das ausências. Esta abordagem visa mostrar que o que não existe no campo da experiência social é ativamente produzido como uma alternativa não confiável/plausível. Portanto, a sociologia das ausências deve superar a monocultura do conhecimento e o rigor científico, a lógica do tempo linear e a classificação social.

A partir de Hines (Citation1988), propomos relacionar o poder da contabilidade para comunicar a(s) realidade(s) e a necessidade de relatos alternativos às produzidas pela sociologia das ausências:

“Você pensa seriamente que qualquer coisa neste mundo pode ser ‘neutra'?”

“Você acha que já houve uma notícia que levou tudo em conta; não deixou nada de fora; apresentou o quadro completo?” […]

“Ter o quadro completo – uma visão verdadeira, justa de algo – depende de as pessoas decidirem que têm o quadro completo. Às vezes, elas perguntam depois […] por que não obtivemos o resto da imagem ou uma imagem diferente? Isso pode continuar e continuar. As pessoas se sentem intituladas à realidade.”

“Esse é o paradoxo. É aí que caminhamos uma linha muito tênue. Nós comunicamos a realidade: esse é o mito; é nisso que as pessoas acreditam. É mesmo o que a maioria de nós acredita. E, em certo sentido, nós de fato comunicamos a realidade.” (pp. 252-254).

Santos (Citation2002) propõe uma sociologia das emergências para contrariar a razão proléptica (indolente). Esta razão fundamenta, em suas diversas formas, o conhecimento filosófico e científico hegemônico ocidental, apoiando um desenvolvimento sócio-econômico-político linear da consolidação do Estado liberal na Europa e América do Norte, a revolução industrial, o desenvolvimento capitalista, o colonialismo e o imperialismo.

Para enfrentar a razão proléptica e indolente, a sociologia das emergências deve confrontar um futuro linear e singular, substituindo o vazio por possibilidades plurais e concretas, utópicas e realistas construídas no presente por meio de ações de cuidado. Para Santos (Citation2002), a multiplicidade de experiências e conhecimentos de agentes revela um presente plural que se opõe à visão hegemônica e totalizadora. Com a sociologia das ausências, esta multiplicação ocorre pela ecologia do conhecimento, dos tempos, das diferenças, das escalas e das produções. Ela amplifica simbolicamente os sinais para expandir a compreensão do presente. Portanto, a multiplicidade e a diversidade emergem do reconhecimento de diferentes formas não hegemônicas de comunicação e informação. Ainda nesse sentido, abraçamos o “princípio da não-indiferença” para superar o “princípio da não-intervenção”, como proposto por Seitenfus et al. (Citation2007, p. 8).

Santos (Citation2002) enfatiza a importância de criar reciprocidade entre as experiências disponíveis e utópicas. O foco deve estar no conhecimento relacionado às práticas de diferentes agentes, identificando preocupações comuns e suas diferentes respostas para criar inteligibilidade entre as formas organizacionais e os objetivos de ação. É a única maneira de produzir resultados alinhados com as SAE.

Cavaca et al. (Citation2016), por exemplo, desenvolveram um estudo baseado nas SAE para identificar e analisar doenças negligenciadas pela mídia em relação às questões de saúde mais críticas para a população do Espírito Santo, no Brasil. Em conclusão, argumentamos que as SAE podem contribuir para a tradição estabelecida de amplificar as vozes marginalizadas acerca de problemas e questões de saúde pública, como a pandemia de Covid-19.

2.3. Interseccionalidade e necropolítica no contexto desigual do Brasil

Para examinar as desigualdades pandêmicas no Brasil, propomos associar a contra-contabilidade com a abordagem interseccional. A contra-contabilidade tem o potencial de (i) promover resistência às tentativas de reduzir os direitos humanos colocados em risco pelo Estado ou pelas corporações (Gallhofer & Haslam, Citation2019); (ii) amplificar as perspectivas das vozes oprimidas (Apostol, Citation2015); (iii) tornar visíveis ações, informações e interesses, ou revelar preconceitos em relação às desigualdades e injustiças (Dillard & Vinnari, Citation2017), ainda mais em contextos pós-coloniais como o Brasil (Carvalho et al, Citation2021).

De acordo com Akotirene (Citation2019), a interseccionalidade analisa a inseparabilidade estrutural do racismo, do capitalismo e do patriarcado cis-heteronormativo. Ela nos permite reconhecer as desigualdades promovidas pelas estruturas neocoloniais universais que acabam silenciando vozes e estigmatizando corpos vítimas de diversas formas de opressão (Carneiro, Citation2003). Importante destacar que, apesar de originalmente focada na intersecção entre raça e gênero, a teoria interseccional evoluiu no sentido de compreender outras desigualdades e dinâmicas de poder, tais como a exclusão dos povos originais/nativos/indígenas devido às práticas coloniais (Dhilon, Citation2020).

Apesar de serem amplamente explorados em estudos organizacionais (Haynes, Citation2017), é preciso ainda “reconhecer a intersecionalidade entre raça, gênero e classe na compreensão da desigualdade e exclusão em organizações [e estudos] contábeis” (Kyriakidou et al., Citation2016, p. 6). Nesse sentido, Willows e October (Citationno prelo, p. 7) proporcionam um diálogo sobre a origem e o propósito da interseccionalidade, concentrando-se no “intertravamento de suas identidades sociais”, no qual “as mulheres não são apenas mulheres, elas são uma categoria particular de mulheres, como as mulheres negras. Como resultado, ao construir hipóteses sobre as mulheres negras, o teorizador, a teorizadora, precisam considerar raça e gênero e como elas se cruzam (dupla marginalização) para entender as experiências delas”.

Como destacado anteriormente, consideramos a Covid-19 uma crise generificada e racializada. Nossa construção contra-hegemônica baseada em uma lente interseccional (Akotirene, Citation2019; Carneiro, Citation2003; Crenshaw, Citation2002; Ribeiro, Citation2019) visa revelar as desigualdades de poder em relação à dinâmica do cuidado porque “é não só gênero, mas também classe e raça que, em nossa cultura, nos permitem identificar quem pratica o cuidado e de que maneira” (Tronto, Citation2009).

Em uma crise de saúde como a do Covid-19, o trabalho do cuidado se torna uma prática perigosa (como proposto por Pimenta, Citation2019) porque coloca as mulheres na linha de frente da pandemia. Mundialmente, a profissão de enfermagem ilustra este cenário de cuidados perigosos porque “70% da força de trabalho global da saúde são mulheres, um número que aumenta para 90% com as assistentes sociais […] mulheres, e as mulheres negras, em particular, têm menos acesso a Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e treinamento” (Lotta et al., Citation2021, p. 1264). No cenário brasileiro, isto é claramente demonstrado pelo caso das empregadas domésticas que são colocadas no dilema: trabalhar e ser infectadas pelo vírus ou ficar em casa e morrer de fome devido a problemas financeiros causados pela pandemia (Teixeira, Citation2021).

Além disso, Agius et al. (Citation2020) destacaram o impacto positivo dos estilos de liderança de mulheres que ocupam cargos de líderança mundial ao lidar com a pandemia: “as líderes da Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Islândia, Noruega, Taiwan e Nova Zelândia foram elogiadas pela ‘gestão de crise’ superior em comparação com os líderes por causa de sua 'resiliência, pragmatismo, benevolência, confiança no senso comum coletivo, ajuda mútua e humildade'” (p. 446). Concluem que os valores de “líderes” mulheres para enfrentar a pandemia de Covid-19 se opunham à masculinidade branca tóxica (Agius et al., Citation2020; Harsin, Citation2020). Os valores contrastantes dos líderes políticos homens e mulheres revelam a relação de interseccionalidade com o desenho de políticas governamentais, minimizando os múltiplos impactos pandêmicos em vários contextos.

Assim, a teoria interseccional nos ajuda a entender melhor como a crise afeta diferentemente indivíduos com base no gênero, raça e classe e permite que indivíduos marginalizados sejam ouvidos e vistos (Ribeiro, Citation2019). No Brasil, devemos considerar como a herança da escravidão se perpetua hoje através de ações governamentais voltadas para a manutenção das desigualdades sociais, raciais e de gênero (Lotta et al., Citation2021; Teixeira, Citation2021).

Embora o vírus não faça distinção entre grupos sociais, as (in)ações governamentais brasileiras de combate ao vírus fazem, constituindo um estado necropolítico. Mbembe (Citation2016) define necropolítica como a divisão da humanidade em (sub)grupos, construindo hierarquias baseadas em valores e práticas coloniais e conservadoras (meritocracia, securitização e salvacionismo) com o objetivo de criar categorias dicotômicas de pessoas, como mostrado na (Oliveira, Citation2018). Sob o neoliberalismo e o colonialismo, a necropolítica constrói hierarquias baseadas em práticas raciais, de gênero e nos valores morais do conservadorismo que visam exterminar as diferenças, definindo quem deve viver ou e quem deve morrer (Cutrim & Sefair, Citation2019; Rodrigues & Pinheiro, Citation2019). A necropolítica é parte do significativo projeto de soberania moderna, baseado na “instrumentalização generalizada da existência humana e destruição dos corpos e populações humanas” (Mbembe, Citation2016, p. 125).

Figura 1. Necropolítica como hierarquização social Fonte: Oliveira (Citation2018, p. 51).

Figura 1. Necropolítica como hierarquização social Fonte: Oliveira (Citation2018, p. 51).

As premissas de meritocracia neoliberal deixam de lado elementos históricos da sociedade (Castilla & Benard, Citation2010). Por exemplo, a exploração por uma classe dominante em detrimento de outras, como a escravidão dos povos nativos e africanos no Brasil colonial, e suas consequências em relação aos níveis historicamente elevados de desigualdade. Ainda que a sociedade brasileira esteja imersa em uma lógica neoliberal, suas fraquezas e inconsistências são de fato expostas em períodos de crises financeiras, políticas e sociais (Shantz, Citation2010).

Nascimento (Citation2017[1978]) denuncia a (in)ação histórica e repetida dos governos no Brasil como uma forma de genocídio e necropolítica do povo negro. Os governos adotam medidas deliberadas e sistemáticas (por exemplo, violência, condições de vida impossíveis, desconsideração dos direitos fundamentais e controle da natalidade) calculadas para exterminar grupos sociais como negros ou pobres. Além disso, o conjunto de violências contra os povos indígenas no Brasil foi perpetuado por mais de 500 anos (Cimi, Citation2020), com alguns autores e autoras até mesmo falando de genocídio indígena (Terena & Duprat, Citation2021), especialmente relacionado às conseqüências da pandemia de Covid-19 (Figueira et al., Citation2020). Neste sentido, um Estado pode adotar a necropolítica para perpetuar um genocídio (Mbembe, Citation2016).

Em conclusão, nosso arcabouço teórico visa propor um contra-relato interdisciplinar baseada nas SAE para confrontar o discurso hegemônico que omite as bases da desigualdade interseccional. Na próxima seção, apresentamos a trajetória metodológica trilhada para desafiar a razão hegemônica, contrastando diferentes posicionamentos da mídia para fornecer um contra-relato alternativo da realidade brasileira e para expor as desigualdades enfrentadas e a voz dos grupos oprimidos na pandemia.

3. Trajetória metodológica

Para compor o nosso corpus da pesquisa, adotamos uma análise baseada na “codificação temática” (Saldaña, Citation2009) usando notícias e editoriais relacionados ao primeiro mês da pandemia de Covid-19 nos sites de veículos brasileiros de mídia. Argumentamos que o primeiro mês é crucial para entender o cenário brasileiro porque, depois dele, existiram várias mudanças no cargo de Ministro da Saúde. A troca do primeiro ministro da saúde ocorreu devido ao desalinhamento ideológico com opresidente em relação às recomendações da OMS (Abrucio et al., Citation2020). Entendemos que este período revela o posicionamento político governamental a ser contrastado com outras vozes para considerarmos as desigualdades interseccionais. Ele define o tom das dificuldades no enfrentamento à pandemia no Brasil nos meses seguintes.

Para compor o corpus da pesquisa, buscamos na internet as palavras-chave “Covid-19” ou “Coronavirus”; e “desigualdade” ou “desigualdades”. Para serem incluídas no corpus, as notícias deviam atender a três critérios: (1) serem publicadas por jornalistas, colunistas ou redatores nos veículos selecionados; (2) data de publicação entre 11 de março e 16 de abril de 2020; e (3) o conteúdo aborda aspectos que relacionam o Covid-19 a um aumento das desigualdades.

Quanto às fontes, selecionamos veículos online representando três grupos distintos: (1) mídia oficial – Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) – Agência Brasil, a agência de comunicação do governo federal; (2) imprensa profissional – Folha de São Paulo, O Globo e Nexo – supostamente imparcial; (3) imprensa independente e crítica considerada “de esquerda”, como Brasil247 e Jornalistas Livres. No final, coletamos 295 reportagens/notícias, depois excluímos 60 notícias devido à aplicação do critério 3 – estabelecer uma relação entre a Covid e as desigualdades – para manter o foco do presente estudo. O corpus final compreende 235 reportagens distribuídas pela Folha (41), O Globo (35), Nexo Jornal (20), Jornalistas Livres (14), Brasil247 (110), e Agência Brasil (15).

Como estratégia analítica, adotamos a análise de conteúdo com dois ciclos de codificação (Saldaña, Citation2009). Como primeiro ciclo analítico, um/a pesquisador/a leu cada notícia para identificar como ela relaciona a Covid às desigualdades. Em seguida, um/a segundo/a pesquisador/a verificou as classificações feitas para confirmar a interpretação. Um/a terceiro/a pesquisador/a consolidou em uma categoria temática baseada na similaridade de temas relativos à desigualdade [bases da desigualdade]. Produzimos uma planilha contendo o nome do veículo, título, seção, data de publicação, weblink, resumo e bases de desigualdade para cada entrada do corpus neste ciclo.

Em um segundo ciclo analítico, a partir da categorização de 235 notícias, obtivemos um total de 1.142 códigos. A resume a análise de conteúdo por veículos em relação às bases de desigualdade identificadas em 235 notícias relacionadas ao Covid-19 à desigualdade.

Tabela 1. Notícias e bases das desigualdades identificadas por veículo.

Tabela 2. Mídia, notícias e categorias por quadrantes.

Quanto à análise axial, consideramos o propósito das SAE de classificar cada notícia e suas bases de desigualdade em um dos quatro quadrantes definidos de acordo com Santos (Citation2002). O primeiro eixo coloca as noções de “explícito/presente” em oposição à “oculto/ausente” em relação à razão metonímica, enquanto o segundo eixo diferencia o discurso “hegemônico/totalizante” daqueles que tratam de questões “alternativas/interseccionais” (ver ).

Figura 2. Quadrantes analíticos Fonte: Autores/as, com base em Santos (Citation2002)

Figura 2. Quadrantes analíticos Fonte: Autores/as, com base em Santos (Citation2002)

O eixo vertical representa o contínuo de “explícito/presente” e “implícito/ausente”. As duas dimensões opostas apresentam os regimes de (in)visibilidade no estágio atual da esfera pública interconectada. De um lado, temos mais evidências e construções reconhecidas nos veículos de mídia investigados; do outro, aqueles que estão no fundo, quase escondidos, perifericamente visíveis, sem grande destaque, mas que apontam para movimentos que mudam a realidade. Os dois eixos aparecem nos veículos de mídia investigados. Em seguida, em nossa análise, exploramos detalhes dos discursos sobre a pandemia (Hurley, Citation2020; Hatcher, Citation2020) e com base nas SAE (Santos, Citation2002). A representação gráfica (de notícias, veículos e bases de desigualdade) nos ajudou a revelar posicionamentos diferentes e retratar a batalha discursiva a respeito da pandemia no Brasil.

Na seção seguinte, discutimos os resultados problematizando o papel da contabilidade neste contexto sociopolítico específico por meio dos posicionamentos da mídia que nos permitiram revelar a necropolítica e as desigualdades em tempos pandêmicos e contra-relatos de vozes da periferia. Os dados online complementares fornecem uma apresentação sobre o posicionamento e análise de cada veículo.

4. Ausências e emergências de desigualdades em crises discursivas

Nossa análise se baseia em relatos e contra-contas (Lehman, Citation2019b) dos meses iniciais da crise apresenta uma batalha entre o discurso oficial do governo e vários outros atores sociais. Esses atores apresentaram visões alternativas baseadas no reconhecimento de como as desigualdades interseccionais brasileiras se cruzam com as medidas pandêmicas, impactando cada grupo de maneira diferente. Assim, iniciamos a produção do nosso contra-relato considerando o posicionamento da mídia e o debate público como motores para influenciar a agenda e o projeto políticos (Hier & Greenberg, Citation2002), tendo em vista soluções públicas em larga escala (Dunlop et al., Citation2020). Discursos alternativos tentam recrutar e mobilizar leitores de notícias para interferir nas políticas estatais decisivas e cobrar por tecnologias contábeis apropriadas (contar, controlar, orçar ou reportar/divulgar).

4.1. Necropolítica, neoliberalismo e desigualdades pandêmicas

O conceito de necropolítica (Mbembe, Citation2016) teve um papel importante em nosso arcabouço teórico: ele revelou a relação entre as bases da desigualdade, o número de mortes nas favelasFootnote4, e as (in)ações do governo federal. Cada veículo de mídia assumiu uma posição diferente em relação ao conservadorismo do governo federal, que em seus discursos meritocráticos desconsideram a constituição histórica da sociedade brasileira (Cutrim & Sefair, Citation2019; Rodrigues & Pinheiro, Citation2019).

Devido à escolha do(s) termo(s) desigualdade(s) como estratégia de busca, o gráfico mostra uma preponderância de artigos com um ponto de vista mais “interseccional/alternativo” (Q2 e Q4) em vez de um ponto de vista “hegemônico/totalizante”. Notadamente, a análise apresenta uma quantidade considerável de notícias no eixo “hegemônico/totalizante” que está tanto nas dimensões explícita quanto ausente (Q1 e Q3). Neste período, o debate na mídia brasileira concentrou-se na discussão da falácia “vida versus economia”. A detalha a distribuição das categorias entre os quadrantes por veículos e porcentagens.

Como apresentado na , o corpus, formado por 1.142 códigos, teve o maior número de classificações nos quadrantes 2 (450) e 4 (626). Os veículos com o maior número de categorias são Brasil247 (435), Globo (241), e Folha (240). Outro ponto a ser enfatizado é que o Brasil247 e a Folha não estão presentes no Quadrante 1, que é representativo das posições destes veículosFootnote5. O Globo, Agência Brasil e Nexo estão representados em todos os quatro quadrantes. Para melhor entender esses posicionamentos, a apresenta categorias analíticas em cada quadrante, representando bases de desigualdade comumente encontradas, e a seguir, discutiremos citações de notícias de cada quadrante.

Figura 3. Posicionamento de Bases de Desigualdade em Quadrantes Analíticos. Fonte: Dados de pesquisa.

Nota: É importante notar que o tamanho da nuvem de palavras se refere à sua representação apenas naquele quadrante específico e não em relação aos outros quadrantes. Em outras palavras, é uma representação artística, não um gráfico no sentido estrito.

Figura 3. Posicionamento de Bases de Desigualdade em Quadrantes Analíticos. Fonte: Dados de pesquisa.Nota: É importante notar que o tamanho da nuvem de palavras se refere à sua representação apenas naquele quadrante específico e não em relação aos outros quadrantes. Em outras palavras, é uma representação artística, não um gráfico no sentido estrito.

No Quadrante 1 – “Explícito/Presente” e “Hegemônico/Totalização”, o veículo de mídia mais representativo é a Agência Brasil, com 29 inserções, e os temas que dominam sua cobertura são Auxílio Emergencial e Recuperação Econômica. Os trechos representativos são:

Apesar disso, ele destaca que o governo precisa buscar o maior alcance possível para o auxílio. “Isso é mais importante agora do que minimizar o erro de inclusão, isto é, a inclusão indevida de pessoas”, avalia o pesquisador. Para o coordenador de Estudos e Pesquisa em Seguridade Social (COSES) do Ipea, Luiz Henrique Paiva, expandir a proteção social da população mais vulnerável é “a maneira mais rápida para mitigar os impactos econômicos e sociais da pandemia”.(Agência Brasil, 01/04/2020, IIpea estima que 59 milhões são elegíveis para auxílio de R$ 600, ênfase acrescentada).

No exemplo da Agência Brasil, notamos o debate econômico de maneira predominante e a importância das (in)ações do governo federal para fornecer ajuda financeira às empresas e pessoas pobres. Existiram diversas críticas ao programa de ajuda do governo federal brasileiro: (i) alguns consideram o montante insuficiente (Caponi, Citation2020); (ii) a existência defalta de coordenação intergovernamental na prestação dessa ajuda (Abrucio et al., Citation2020); (iii) alguns consideram a ajuda financeira como uma solução limitada à crise pandêmica que não diminuirá as desigualdades estruturais (Demenech et al., Citation2020). A forte presença da Agência Brasil no Quadrante 1 está relacionada a ser uma agência governamental, revelando falta de independência editorial e reforçando seu alinhamento com o discurso hegemônico/totalizante, à luz da razão metonímica.

Assim, o Q1 (“Hegemônico/Explícito”) destaca a discussão sobre as reformas propostas pelo governo com um sentimento predominante de otimismo, provocado pela possível retomada da economia. Discussões positivas frequentemente surgem em relação ao pagamento do auxílio emergencial, medidas econômicas, ajuda aos bancos, a necessidade de reforma tributária, pesquisas de órgãos públicos, funcionários públicos e doações voluntárias privadas. Também foram abordadas discussões sobre políticas de saúde, medidas para combater a doença, valorização do Sistema ùnico de Saúde (SUS)Footnote6 e dificuldades na obtenção de suprimentos e equipamentos de proteção.

O Quadrante 2 – “Explícito/Presente” e “Interseccional/Alternativo” – consolida notícias de uma abordagem interseccional ou alternativa à razão hegemônica. O veículo que domina os debates é o Brasil247, com 190 inserções, seguido por O Globo (106) e Folha (86). Todos os outros veículos apresentam poucos artigos neste quadrante. Como mostrado na , alguns dos temas que mais apareceram foram “Desigualdade social”, “Neoliberalismo”, e “Estado genocida”. Apresentamos abaixo um trecho que representa este discurso:

O coronavirus entra em um Brasil onde saúde pública é mercadoria, e cujo governo acredita e pratica a política do Estado mínimo, de um liberalismo predatório. (Brasil247, 14/03/2020, O Brasil no tempo dos vírus, grifo nosso).

Mas a disseminação da doença, juntamente com medidas para contê-la, também está causando problemas que mesmo a pior gripe não provoca: queda na economia, fechamento de escolas, restrição de transportes públicos e políticas obrigatórias de trabalho em casa, esteja você doente ou não […] Trabalhadores de meio-período, como servidores de restaurantes ou motoristas do Uber, sentirão mais consequências. Qualquer folga provavelmente não será paga e o custo financeiro será mais difícil de absorver. Muitos podem sentir uma pressão maior para continuar trabalhando, mesmo se eles tiverem uma doença crônica que torne o Covid-19 mais perigoso […] Em outras palavras, uma história de desigualdade mais antiga que o novo coronavírus. Em outras palavras, uma história de desigualdade mais antiga do que o novo coronavírus. (O Globo, 07/03/2020, Quão preocupado você deveria estar com o novo coronavírus? Ênfase adicionada).

Ambos os trechos revelam uma oposição ao discurso hegemônico, deflagrada pelas notícias que abordam tanto aspectos explícitos do discurso hegemônico quanto os ausentes. Portanto, ambos os exemplos mostram os efeitos colaterais da adoção do neoliberalismo no Brasil. O primeiro trecho evidencia como a saúde pública no Brasil tem sido transformada em mercadoria devido às idéias neoliberais. Neste sentido, é essencial lembrar que o sistema de saúde brasileiro (SUS) já foi considerado um modelo (Ventura & Bueno, Citation2021). Neste sentido, observamos que “[m]esmo sistemas avançados de saúde são imperializados por persistentes disparidades de riqueza e acesso a recursos e processos decisórios” (Shantz, Citation2010, p. 17). Portanto, a redução do acesso à saúde pública pode ser vista como (i) um processo neoliberal no sentido de que também reduziria o orçamento público; (ii) uma tecnologia necropolítica porque torna o acesso à saúde mais difícil para pessoas que não podem pagar planos de saúde privados; e (iii) um instrumento para fabricar/manter desigualdades (Andrew et al., Citation2021).

O segundo trecho demonstra como a crise econômica devido à pandemia afetará mais trabalhadores de regime de tempo parcial e destaca que isto se deve a desigualdades pré-existentes. Alguns trabalhadores, como os motoristas Uber, eram vistos anteriormente como “dirty workers” (Kreiner et al., Citation2006). Entretanto, durante a pandemia, eles se tornaram trabalhadores essenciais com status de herói (Mejia et al., Citation2021), uma vez que as pessoas de classe média e alta eram autorizadas a trabalhar em casa, terceirizando o perigo da exposição ao vírus. Um cenário com maiores níveis de desemprego e informalidade econômica, como o Brasil, mostra como a desigualdade socioeconômica pode ajudar algumas pessoas a evitar a infecção enquanto outras são colocadas na linha de frente devido às necessidades financeiras, deixando evidente a relação entre os casos/mortes da Covid-19 e as desigualdades sociais.

No Quadrante 3 – “Implícito/Ausente” e “Hegemônico/Totalizante” – todos os veículos têm um pequeno número de inserções, entre 2 e 8. Apesar de estarem posicionados nos quadrantes de oposição ao discurso hegemônico, o Globo e a Folha têm notícias no Quadrante 3, pois abordam questões econômicas alinhadas com o discurso hegemônico. A mídia tradicional muitas vezes traz o discurso hegemônico para contemplar a pluralidade política de seus leitores. A Folha está mais presente, e seu tema mais levantado é a Educação à Distância (EaD). Este período marca o início da transição para o ensino emergencial à distância, em todos os níveis de ensino, em um país de dimensões continentais e marcado por diferenças regionais significativas como o Brasil, como mostrado nos trechos abaixo.

Conforme o especialista, “as instituições de ensino superior, principalmente aquelas que ficam em regiões mais pobres ou remotas, precisam ficar atentas ao fato de que possivelmente uma boa parte de seu corpo discente não tem infraestrutrura doméstica adequada para o aprendizado a distância, então a migração intempestiva para o EAD em tempos de covid-19 pode vir com alguns riscos”. (Agência Brasil, 01/04/2020, Um terço dos candidatos à universidade não tem acesso ao DL, ênfase acrescentada).

[…]os seguintes níveis de priorização: 1) Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico; 2) pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico; 3) pacientes que carecem de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica; (Folha, 01/04/2020, Como na Itália, falta de UTI nos fará escolher entre quem vive e quem morre, ênfase acrescentada).

A primeira notícia mostra que o ensino remoto no Brasil pode impactar mais fortemente estudantes pobres do que aqueles com um ambiente doméstico apropriado para estudar (internet de alta velocidade, localização adequada, espaço tranquilo, etc.). Em um país com graves desigualdades habitacionais, este é outro exemplo de como a Covid-19 está ampliando as desigualdades relacionadas às necessidades básicas “[…] como alimentação, moradia, saúde, educação e trabalho seguro, o que tem implicações para o campo da prática contábil que prioriza o valor acionário e os mercados de capital” (Andrew et al., Citation2021, p. 9).

A segunda notícia exemplifica o processo de quantificação cega e desumanização com base em práticas calculativas e hierárquicas que no passado legitimaram a escravidão (ver Jensen et al., Citation2021; Rodrigues & Craig, Citation2018). Agora, elas podem estar ligadas ao neoliberalismo devido aos níveis de priorização que favorecem corpos que: (i) têm maior chance de recuperação, (ii) são necessários para suprir o mercado de trabalho, ou (iii) são “normais”, relegando corpos com comorbidades à morte. Os níveis de priorização são também um dispositivo necropolítico que decide quem merece viver e quem deve é autorizado a morrer (Mbembe, Citation2016), vinculando assim a contabilidade através de decisões que calculam o destino de pessoas entre a vida e morte.

O Quadrante 4 – “Implícito/Ausente” e “Interseccional/Alternativo” é dominado pelo Brasil247 (241), Folha (146), e O Globo (130). Este quadrante é responsável pelos temas relacionados à necropolítica, acesso à saúde, desigualdade racial e ao contexto das favelas e comunidades periféricas. Algumas notícias abordam as condições desiguais de isolamento social das populações encarceradas e das famílias em condições habitacionais inadequadas nas favelas e comunidades periféricas devido à aglomeração urbana e à especulação imobiliária. Elas revelam que a “democracia do vírus” tem um impacto único sobre as pessoas que se tornam vulneráveis por diferentes condições que estão estruturalmente ocultas no discurso hegemônico.

Assim, o quadrante Q4 representa a oposição que surge quando adotamos a lente da sociologia das ausências, como nos trechos abaixo:

Agora em um cenário de vida ou morte, a Covid-19 escancarou a dimensão da desigualdade no Brasil e os privilégios que algumas camadas detêm em relação às demais. (Folha, 04/03/2020, Epidemia e distribuição de UTIs privadas escancaram desigualdade).

De acordo com uma pesquisa da Oxfam, as mulheres representam 97% dos trabalhadores domésticos no país. A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) também lançou um abaixo-assinado on-line, no site change.org, pedindo aos empregadores que liberem as profissionais do trabalho e, se for possível, antecipem férias e 13° salário. A entidade ainda pede que, se a dispensa não for possível, precauções sejam tomadas, com a oferta de luvas, máscaras, álcool em gel e pagamento de transportes alternativos (O Globo, 20/03/2020, Domésticas, categoria com 533 mil profissionais no Rio, reivindicam benefícios durante a pandemia, ênfase acrescentada).

Não deve espantar a indiferença do governo atual, herdeiro daquele da ditadura, diante da sorte de nossa gente que vive nas pequenas cidades, nas favelas e periferias das grandes cidades, no campo e nos rincões, frente às consequências da pandemia (Brasil247, 01/04/2020, 1° de abril: de que democracia estamos falando?, ênfase acrescentada)

Os três trechos acima estão intrinsecamente relacionados à história de escravidão do país, que conecta a necropolítica (Mbembe, Citation2016) e o genocídio dos negros brasileiros (Nascimento, Citation2017[1978]). Como discutido anteriormente, as empregadas domésticas enfrentam o dilema social de se arriscar a trabalhar ou enfrentar a insustentabilidade financeira. Segundo Teixeira (Citation2021), a sociedade brasileira vive um sentimento de nostalgia pela escravidão que sustenta a posição social das empregadas domésticas, “as empregadas domésticas no Brasil são em sua maioria negras […] Não apenas estatisticamente, mas também em termos de imaginário social. Nosso imaginário coletivo atribui às mulheres negras a figura da faxineira, mas nunca a de médica” (p. 253). Esta nostalgia da escravidão está relacionada à (in)ação dos governos para minimizar estruturas racistas no Brasil, e agora, durante a pandemia de Covid-19, leva ao desempenho da necropolítica por parte do Estado.

Em segundo lugar, vivemos em um estado que realiza a necropolítica – que é a política de produção de morte, como definido pelo filósofo Mbembe (2019). Não é uma política de morte aplicada exclusivamente na lei marcial, como durante uma guerra, quando matar e morrer é autorizado. Em nosso país, uma guerra de genocídio está sendo travada todos os dias. O Estado brasileiro dita quem pode viver ou morrer, e também mata de acordo com os critérios da escravidão: os que morrem são os negros, os indígenas e os descendentes de escravos, seja pela arma ou pela negligência do Estado. […]

O trabalho doméstico no Brasil foi precedido pelo trabalho escravo. Os predecessores históricos das empregadas domésticas foram os chamados escravos domésticos, que foram escolhidos durante o período escravo para trabalhar nas casas dos colonizadores, servindo-os em sua intimidade e cuidando de seus filhos. (Teixeira, Citation2021, p. 253).

Dada esta discussão sobre a posição social das empregadas domésticas na sociedade brasileira, podemos observar como raça, gênero e classe se cruzam, contribuindo para um cenário necrópolítico. Para sobreviver e resistir à necropolítica, “as mulheres negras brasileiras lideram o movimento negro brasileiro entendido a partir de uma perspectiva mais orgânica e resistente, além da idéia de movimentos que meramente mobilizam as ruas do país. Elas lideram movimentos negros percebidos como a ‘solidariedade que existe nas favelas, nas escolas de samba, nos terreiros’” (Teixeira, Citation2021, p. 250). Assim, nosso objetivo é contribuir para os contra-relatos de grupos oprimidos, pela adição de uma lente interseccional.

Em resumo, nossa análise nos permitiu compreender melhor o posicionamento dos veículos de mídia utilizando quadrantes opostos: Q1 – Explícito/Presente x Hegemônico/Totalizante; Q2 – Explícito/Presente x Interseccional/Alternativo; Q3 – Implícito/Ausente x Hegemônico/Totalizante; Q4 – Implícito/Ausente x Interseccional/Alternativo. Por um lado, a mídia tradicional tinha um posicionamento mais ambíguo, mas possuía espaços abertos para vozes alternativas, principalmente através de colunistas e blogs. Por outro lado, como Sikka (Citation2006) apontou, a Internet confirmou seu potencial como um dispositivo comunicativo, oferecendo oportunidades para o aparecimento de veículos de mídia alternativa. Esses veículos de mídia alternativa trouxeram de forma mais direta, numa cobertura mais enfática, temas tratados de forma ambígua pela mídia tradicional. Dessa forma, eles ajudaram a revelar uma crise discursiva sobre as bases das desigualdades na pandemia brasileira.

4.2. Contra-relatos das desigualdades e ações na periferia

O Brasil tem experiências passadas bem sucedidas com outras epidemias e pandemias (por exemplo, Zica). Entretanto, a luta contra a pandemia de Covid-19 tem enfrentado vários desafios, como a postura do presidente e a intensificação das desigualdades sociais resultantes das políticas neoliberais implementadas pelos governos atuais e anteriores. Neste sentido, os grupos mais afetados são formados pela “população que vive na informalidade e reside em áreas precárias, ou seja, que tem renda baixa e irregular, sem acesso a água potável, moradia digna, sistemas privados de saúde e sistemas de proteção social […]” (Costa, Citation2020, p. 971).

Como apresentado na seção anterior, as notícias do Q2 e Q4 revelam as demandas de agendas públicas e coletivas sobre ações alternativas para as populações vulneráveis e excluídas. Portanto, em nosso terceiro ciclo analítico, optamos propositalmente por amplificar as vozes dos grupos submetidos às desigualdades, contribuindo para a expansão do foco da contra-contabilidade. Dessa forma, descrevemos ações organizadas por movimentos populares e ONGs. Esta estratégia analítica nos ajudou a produzir um contra-relato de como as periferias e favelas, em um movimento de resistência e insubordinação, reagiram à necropolítica, construindo caminhos de sobrevivência nas brechas do sistema e opondo-se à necropolítica, estabelecendo ações contra-hegemônicas que tornam possível sua própria existência e resistência.

Assim, seguindo as SAE (Santos, Citation2002) e o potencial emancipatório dos contra-relatos (Gallhofer et al., Citation2006; Gallhofer & Haslam, Citation2019), a análise das notícias nos permitiu revelar a presença de ações contra-hegemônicas para a sobrevivência das populações marginalizadas. Esse contra-relato apresenta comunidades, periferias e favelas operando ativamente nas inescapáveis lacunas das políticas públicas.

Por meio da auto-organização comunitária, em resposta à (in)ação do governo, exemplos como Paraisópolis (em São Paulo) e o Escritório da Crise no Complexo do Alemão (no Rio de Janeiro), mostram que as periferias atuam além do Estado, que só chega até elas através das forças policiais. O trecho seguinte reflete esta alternativa relevante para apresentar um discurso contra-hegemônico e apoiar o contraste da crítica sutil à crítica grosseira, alternativa e secundária, conforme destacado pela Agência MuralFootnote7:

[…] as periferias têm se organizado para enfrentar a pandemia. Há muitas ações realizadas por moradores que têm buscado tanto novas fontes de renda quanto conscientizar a população de que é preciso evitar sair de casa. […] A solidariedade sempre foi uma das marcas dessa atuação periférica, mas ela não será suficiente se diariamente essas populações forem confundidas por quem não se importa com o número de óbitos.

Grupos marginalizados usam suas vozes para apontar temas emergentes que estão ausentes devido à razão metonímica hegemônica. Esses grupos utilizam plataformas digitais ou mesmo criam seus próprios veículos, tais como o jornal Voz da Comunidade. Notavelmente, a Folha criou o PerifaConnection, refletindo processos e temas de/para estas comunidades e reverberando-os para públicos mais amplos, criando espaço para mudanças. Os canais de comunicação constituídos neste cenário são o Portal Favela, a seção Giro da Quebrada da Agência Mural, e a Ponte Jornalismo. Para exemplificar as (re)clamações destes veículos e para praticar a ecologia do conhecimento, como proposto por Santos (Citation2002), apresentamos abaixo um extrato da PerifaConnectionFootnote8:

O direito a quarentena é excludente, estando os favelados e suburbanos na base da marginalização econômica, sendo o corpo negro coisificado e reconhecido como uma unidade de trabalho lucrativa e suas subjetividades não reconhecidas nos planos de contingências.

A mídia alternativa exemplifica as (re)emergências e embasa contra-relatos, trazendo vozes periféricas de mulheres em entrevistas no Blog MulheriaFootnote9:

Estamos ao Deus dará”, resume a professora da periferia Ane, uma das entrevistadas de Osasco, na Grande São Paulo. Já Gisele, trancista de cabelos e cuidadora de idosos recém-demitida do interior do estado, compartilha a angústia de manter dentro de sua casa de dois cômodos os seus três filhos em idade escolar sem merenda “que comem o dia todo”. Ela sabe que vai faltar sustento, comida na mesa e o mínimo de paz. “Tem hora que não sei para onde correr”, desabafa.

Rafaela também não. Atendente de telemarketing, ela cumpre jornada de trabalho “normalmente” no escritório lotado como terceirizada de uma grande empresa que, por sua vez, liberou seus “funcionários próprios” para home office. “Os nossos corpos periféricos são menos importantes que o da classe média”, analisa Rafaela, na mira.

Estes discursos reconhecem as vozes das mulheres de diferentes contextos sociais, econômicos e regionais, como proposto pela Teoria Interseccional (Crenshaw, Citation2002; Akotirene, Citation2019). Também demonstram seus papéis diferentes em um mercado de trabalho precário e mal remunerado, enquanto se apresentam como a única fonte de renda familiar e sujeitas à violência doméstica. A relação entre violência e contabilidade demonstra o potencial de desumanização da contabilidade, permitindo ocorrências de violência com grupos subalternizados similar ao que acontece com populações racializadas (Annisette & Prasad, Citation2017). Lehman (Citation2019b) argumenta que “[e]xplorar o papel da contabilidade em relação às mulheres e à violência simbólica, a violência física, a quantificação e a qualificação têm sobreposições e desordens inevitáveis” (p. 1).

Nessas ações de resistência sob a Covid-19, reconhecemos o papel vital da mulher negra na sociedade brasileira. Como diz Silvio de Almeida (Citation2019), “as mulheres negras desenvolveram tecnologias de resistência e formas de manutenção da vida […] elas sempre foram o pilar da vida social e política e conseguiram manter, graças às formas de organização que desenvolveram, a vida nas comunidades”.

Ao abrirem caminho na luta contra o sexismo e o racismo (Ribeiro, Citation2019), as mulheres negras costuraram uma presença na vida de suas comunidades que as fazem ocupar atualmente posições de liderança no movimento negro. Ao mesmo tempo, no cenário pandêmico, os papéis sociais ligados ao cuidado são reforçados, seja na esfera familiar, da própria família ou no cuidado profissional adequado das famílias de outros (Lima e Souza & Andrade, Citation2021) ou como profissionais de saúde.

Estas vozes também denunciam a histórica e repetida (in)ação dos governos que reproduzem uma história de negligência e exercício do biopoder – como denunciado por Abdias Nascimento (Citation2017[1978]) e Figueira et al. (Citation2020) – que projetam e implementam a necropolítica. Por outro lado, os movimentos sociais se opõem a essas (in)ações governamentais com ações comunitárias de solidariedade, como as da Central Única das Favelas (CUFA). Além das ações de solidariedade, a CUFA também organiza um portal de notícias, essencial para fazer ouvir a voz da periferia – se não da sociedade em geral, de toda a comunidade periférica – visando a resistência/existência de vários grupos oprimidos em um contexto marcado pelo abandono dos negros brasileiros após o fim da escravidão (formal) no Brasil.

Uma das ausências percebidas é a repercussão da causa indígena, que também tem raízes históricas no Brasil colonial. Apenas uma notícia foi encontrada com este tema, classificada no Quadrante 4 e publicada pela Nexo. A notícia trata de como o coronavírus afetaria as populações indígenas do país. Ela foi publicada em março, no início da pandemia. Nossa análise mostra uma notável ausência no contra-relato, o que nos permite afirmar que os povos nativos brasileiros não foram “levados em conta”. Vale notar que posteriormente a Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) coordenou uma série de ações auto-organizadas, ecoando as vozes (e lutas) dos povos indígenas em uma série intitulada Emergência Indígena (Arjaliès et al., Citation2021) e no projeto de memorialização Vagalumes. A APIB lançou um relatório em novembro de 2020 sobre a pandemia e seus efeitos sobre os povos nativos (APIB, Citation2020).

5. Discussões e conclusões

No contexto de uma crise discursiva durante a pandemia da COVID-19 no Brasil, nosso estudo nos permitiu preencher a lacuna de um melhor entender sobre o papel dos contra-relatos diante da desigualdade, desafiando o regime de verdade produzido pelo discurso hegemônico na mídia. Nossas escolhas teóricas destacam a contribuição das Sociologias das Ausências e das Emergências (Santos, Citation2002) à literatura da contra-contabilidade.

Além disso, adotamos o conceito de necropolítica (Mbembe, Citation2016) e lentes interseccionais (Akotirene, Citation2019; Carneiro, Citation2003; Crenshaw, Citation2002; Ribeiro, Citation2019) que nos ajudaram a analisar o discurso hegemônico e a destacar nuances das desigualdades brasileiras e ações de resistência dos grupos oprimidos. tais conceitos foram fundamentais para nossas análises que revelaram as (re)emergências das desigualdades e como as tecnologias contábeis foram desconsideradas na lógica neoliberal e necropolítica do governo.

Em termos metodológicos, categorizamos e “prestamos contas” das desigualdades como contribuição que surgiu de um corpus que escancarou o aprofundamento das disparidades visando grupos não hegemônicos. Para contrapor as vozes alternativas, selecionamos propositadamente uma cobertura diversificada, desde a agência oficial de mídia (Agência Brasil), passando pelos veículos tradicionais (Folha e O Globo), até as mídias alternativas de diferentes posicionamentos (Nexo, Jornalistas Livres, e Brasil247). Assim, a análise temática da desigualdade baseada em quatro quadrantes foi responsável por discursos polarizados que reverberaram a intensificação das desigualdades históricas durante a pandemia, mesmo em veículos de mídia com um posicionamento mais tradicional.

Por um lado, enquanto discurso hegemônico, o presidente brasileiro negou os perigos do vírus e evitou decisões que reconheciam a pandemia como um problema de saúde pública que exigia uma ação coletiva (Barberia & Gomez, Citation2020). Observamos ainda como as idéias neoliberais influenciaram a resposta governamental, sustentando o discurso de que a economia não deve parar, construindo uma falsa dicotomia entre vidas e economia (Nunes, Citation2020). As premissas neoliberais baseadas na liberdade individual também ganharam tração no contexto brasileiro sustentando comportamentos anti-máscaras e anti-vacinas, “tratamento precoce” ou soluções caseiras, ao invés de uma política pública bem articulada visando soluções coletivas. Por outro lado, a análise destacou que várias bases de desigualdade foram uma pedra angular com consequências (in)diretas para uma flagrante perda de direitos, violência racial e de gênero, assim como um aumento nas relações precárias de trabalho que poderiam ter sido evitadas se se adotasse outra lógica e práticas de teorizações interseccionais do feminismo negro.

Nossos resultados apontam para o papel crítico da mídia alternativa na expansão da compreensão do presente, refletindo sobre discussões e possibilidades de contrapor o hegemônico. A anatomia das desigualdades levantadas pelos veículos torna possível: (i) apresentar o sofrimento daqueles condenados à não existência no discurso hegemônico; (ii) possibilitar a existência e a resistência a partir e dentro das margens da sociedade. Assim, os resultados permitiram uma melhor compreensão de realidades alternativas ao discurso hegemônico no que diz respeito à (re)emergência de conhecimentos alternativos, transformando ausências em presenças e concentrando-se em fragmentos de experiências sociais não socializadas pelo discurso hegemônico.

Destacamos dois termos que emergem na análise das notícias. Primeiro, veículos progressistas Brasil247, Jornalistas Livres e Nexo enfatizaram a expressão “estado genocida”. Eles conectaram a atual política de morte do governo brasileiro com uma campanha armamentista e pró-armamento. O segundo termo é necropolítica, que surgiu nos textos de colunistas de veículos mais tradicionais como a Folha de São Paulo.

Apesar de centenas de mortes, a construção discursiva do governo brasileiro ainda foi sustentada por sua rede de apoio original (Barros & Wanderley, Citation2020). Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal e partidos políticos de esquerda desafiaram o cenário político pró-governo para contrabalançar questões controversas, decisões governamentais complexas e redes de apoio.

Por exemplo, partidos de esquerda lutaram para aprovar o “Plano de Auxílio Emergencial” para distribuir renda (cerca de U$ 100) para aqueles mais afetados pelas recessões econômicas. O plano foi politicamente capitalizado pelo presidente (Cardoso, Citation2020). Por exemplo, o Poder Legislativo aprovou um orçamento extraordinário para atender às demandas de infra-estrutura de saúde nos municípios. Entretanto, o governo não transferiu o orçamento ou o atrasou, causando um aumento no número de casos e mortes (Abrucio et al., Citation2020; Demenech et al., Citation2020).

Essas situações envolviam tecnologias contábeis que deveriam estar operando para garantir as melhores decisões e relatórios alinhados com os interesses da sociedade. Entretanto, isso aconteceu porque as decisões contábeis (espelhando sua origem profissional) reproduzem o privilégio dos homens brancos e seus valores e idéias masculinos (Lehman, Citation1992; Haynes, Citation2017). Assim, as tecnologias contábeis estavam funcionando inadequadamente sob o discurso hegemônico de “o Brasil não pode parar”, “é só gripezinha”, ou “as pessoas deveriam aceitar passivamente esta fatalidade” (Campos, Citation2020, p. 3).

Além disso, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instalada no início de 2021 para investigar a responsabilidade do governo federal durante a pandemia. Entretanto, medidas mais extremas foram politicamente obstruídas. A CPI revelou várias questões relacionadas à contabilidade que permitiram ao governo federal instalar o estado necropolítico ao não agir para enfrentar a crise sanitária, social e econômica devido à pandemia de Covid. Vários episódios mostram como as tecnologias de contabilidade poderiam informar e apoiar uma melhor tomada de decisão ao (i) informar corretamente os números de mortes e contaminação, (ii) mapear os riscos durante as crises crescentes, (iii) controlar a distribuição de suprimentos para diferentes estados e cidades, (iv) identificar e prevenir tentativas de corrupção (superfaturamento de vacinas).

Nossa análise enfatiza como a inação histórica e repetida dos governos fornece relatos de negligência e o exercício do necropoder no Brasil. A necropolítica projetada e implementada durante a pandemia de Covid-19 vai além de ser mais sutil do que as ações deliberadas para branquear a população brasileira que aconteceram no passado.

De lado, outros atores estiveram na mídia, expondo a fragilidade do processo desde o início. Assim, nosso contra-relato considera o posicionamento da mídia em um debate público como um potencial impulsionador para influenciar a agenda e o planejamento políticos (Hier & Greenberg, Citation2002) para contrabalançar os discursos hegemônicos. Os veículos de mídia tiveram um papel fundamental ao revelar e apoiar os movimentos sociais em suas ações de solidariedade comunitária, fazendo com que as vozes das periferias fossem ouvidas e as práticas reconhecidas mais amplamente. As notícias amplificaram o alcance de ações comunitárias destinadas a resistências/existências desafiando o abandono da população racializada, generificada e empobrecida, resistindo às condições estruturais reproduzidas desde o período de escravidão do Brasil. Também enfatiza o papel significativo das mulheres negras nas posições de liderança nos movimentos de resistência nas comunidades periféricas e favelas à margem do capitalismo (Ribeiro, Citation2019; Teixeira, Citation2021).

Neste sentido, nosso estudo contribui para expandir o potencial dos contra-relatos através da análise temática das notícias da mídia, permitindo o surgimento de entendimentos e reconhecimentos de ações de resistência ausentes de discursos e práticas hegemônicas. Além disso, segue Sikka (Citation2006) para explorar o potencial comunicativo dos sites de Internet e veículos de mídia para contrastar discursos de um lado oculto da realidade sócio-política, revelando as (in)ações necropolíticas durante a pandemia no Brasil.

Declaração de divulgação

Nenhum conflito de interesse potencial foi relatado pelo(s) autor(es).

Financiamento

Este estudo foi financiado em parte pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código Financeiro 001.

Agradecimentos

Agradecemos os valiosos comentários e feedback dos editores, Professores Carol Tilt e Leonardo Rinaldi, e dos/as dois/uas revisores/as anônimos/as da revista, que levaram a melhorias substanciais no artigo. Expressamos nossa gratidão aos movimentos que emergiram nesta pesquisa e que foram ativos no contexto pandêmico. Esperamos que este artigo também sirva para reverberar suas vozes, que têm se levantado nestes movimentos desde de tempos ancestrais.

Notes

1 No presente artigo traduzimos “counter-account” como contra-relato e “counter-accounting” como contra-contabilidade.

2 Hurley (Citation2020) apresenta uma resenha do livro de Horton (Citation2020) discutindo a pandemia de Covid e fazendo um contraponto ao autor original.

3 Entendemos que as desigualdades no Brasil são consequências de um legado colonial em relação a seus 322 anos de submissão a Portugal. Apesar dos processos de independência, em 1822, o Brasil era o único país da América Latina governado por dois imperadores, antigos herdeiros do trono de Portugal. A família imperial foi removida em um golpe, e somente em 1889, com a constituição de uma República (não democrática) em um processo liderado por forças militares apoiadas por elites locais “mestiças”. Este processo particular de independência e constituição da República marcou os povos brasileiros com um profundo abismo nas dimensões social, econômica, política e cultural.

4 “Favela” é a designação das comunidades periféricas mais empobrecidas do Brasil, compostas principalmente de negros, descendentes de escravos. Eles também podem ser chamados de favelas ou favelas.

5 Um posicionamento detalhado dos veículos de mídia é apresentado no Apêndice 1.

6 O SUS (Sistema Único de Saúde) é o serviço nacional de saúde público e gratuito. #vivaosus

7 “Guerra de discursos entre governos pode fazer Covid-19 matar mais nas periferias”, disponível em: https://mural.blogfolha.uol.com.br/2020/04/14/guerra-de-discursos-entre-governos-pode-fazer-covid-19-matar-mais-nas-periferias/ (acessado em 7 de setembro de 2020)

8 “O coronavírus mata, mas a desigualdade social acelera o óbito”, Folha, recuperado de: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/perifaconnection/2020/03/o-coronavirus-mata-mas-a-desigualdade-social-acelera-o-obito.shtml (acessado em 7 de setembro de 2020)

9 “A periferia não pode surtar. E a gente sabe que está ao Deus dará”, disponível em: https://jornalistaslivres.org/a-periferia-nao-pode-surtar-e-a-gente-sabe-que-esta-ao-deus-dara/ (acessado em 14 de outubro de 2021)

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